Secos e Molhados — Al Capone, o whiskey e o crime organizado

Lips that touch wine shall never touch mine — slogan feminino a favor da Lei Seca americana

Tennessee, sul dos Estados Unidos. Lugar conservador para certos padrões, onde ainda impera a Lei Seca em alguns condados. Na pequena cidade de Lynchburg, condado de Moore, o único lugar onde se pode comprar bebida alcoólica é na destilaria da Jack Daniel’s, que tem licença especial para a venda de whiskey. De fato, ainda hoje há condados, em muitos estados americanos, onde a venda de bebidas alcoólicas é rigorosamente proibida — são os dry counties (condados secos).

Mas, para quem aprecia um bom trago, a situação já foi muito pior na terra do Tio Sam. Em 17 de janeiro de 1920, os Estados Unidos implementavam a 18ª Emenda Constitucional (18th Amendment). Associada a ela estava o Volstead Act, conjunto de leis concebidas e escritas pelo procurador da república, Wayne Wheeler, e encabeçadas pelo congressista republicano Andrew Volstead.

A partir daquela data, toda a produção, comercialização e consumo de bebidas com mais de 0.5% de álcool estavam proibidos na totalidade do território americano. Um dos experimentos sociais mais controversos da história do país, com consequências inesperadas e desastrosas para a toda a sociedade.

Algumas pequenas exceções eram feitas, como o uso de whiskey por prescrição médica ou em rituais religiosos. Os Estados Unidos passaram, do dia para noite, a ser uma nação cheia de rabinos, padres, reverendos — e também de doentes que buscavam a cura no whiskey. Até o single malt escocês Laphroaig conseguiu entrar no país como medicamento. Sabemos que ele se diferencia por um sabor medicinal, presente também em outros whiskies da ilha de Islay, mas daí a dizer que é um santo remédio…

Uma coisa era criar a lei, outra seria aplicá-la. Na época, o governo central e os estados americanos encontravam-se totalmente despreparados para lidar com o Volstead Act. Não havia policiais, guarda costeira ou juízes suficientes para combater o comércio de bebidas e os fora da lei, fruto da completa desorganização e da falta de planejamento dos governantes e legisladores. Isso sem falar das autoridades locais que se opunham à legislação, como Edward Edwards, governador democrata de New Jersey, que declarou que seu estado não aderiria à Lei Seca — “New Jersey will remain as wet as the Atlantic Ocean…”

A nação estava completamente dividida entre os que eram a favor da proibição (drys — secos), em sua maioria de republicanos, e os que eram contra (wets — molhados). A divergência estendia-se aos produtores: alguns aderiram à lei imediatamente, enquantos outros resolveram atuar na ilegalidade. Como, por exemplo, os fabricantes do whiskey Templeton Rye, que há pouco tempo tive a oportunidade de degustar no Brandy Library, excelente bar de destilados em Nova Iorque.

O que provei foi uma versão do Templeton Rye, um whiskey com 51% de centeio, chamada Prohibition Era que até hoje usa a receita da época da Lei Seca. Isto mesmo: o pessoal da Templeton seguiu produzindo clandestinamente seu whiskey, durante os 13 anos em que a Lei Seca esteve em vigor…

Foi aí que entendi por que o balanceado e aromático Templeton Rye era o whiskey favorito do mais famoso gângster da história americana, Alphonse Gabriel Capone, o lendário Al Capone. Reza a lenda que esse whiskey conseguiu entrar até mesmo na seguríssima prisão de Alcatraz, onde o célebre Scarface cumpriu pena por quase 5 anos, depois de haver feito fama e fortuna com o comércio ilegal de bebidas na época da Lei Seca.

O Templeton Rye Prohibition Era vale por ser um belíssimo destilado com aromas de cedro e impactantes sabores de especiarias como cravo, canela e noz-moscada. Onde estavam com a cabeça os governantes americanos para proibirem seus compatriotas de deleitarem-se com essa maravilha…?

A história diz que a Lei Seca americana veio com o intuito de combater o alcoolismo e todas as mazelas correlatas, como a violência. Mas o que se vivenciou foi exatamente a multiplicação, como nunca antes, de diversos problemas sociais.

Alphonsus Gabriel Capone

O comércio ilegal de bebidas era extremamente lucrativo, e financiou não só Al Capone, mas todo o crime organizado da época. Os territórios (mercados) de distribuição de bebidas como o whiskey eram disputados violentamente. Coisa muito parecida com que acontece hoje com o tráfico de drogas, no Rio de Janeiro e em outros grandes centros urbanos do País.

A audácia dos criminosos era tanta que eles chegaram a reunir-se uma vez em Atlantic City com a ideia de dividir as áreas de atuação de acordo com a repartição jurisdicional implantada pelo Federal Reserve (Banco Central americano). Seria uma forma de evitar conflitos e mais violência.

Corria sangue na Chicago da década de 20, onde Al Capone atuava, mas jorrava também muito whiskey e rum. O primeiro, contrabandeado principalmente do Canadá; o segundo, do Caribe.

A Lei Seca americana nunca tornou os Estados Unidos realmente dry, provando ser um completo fracasso. Al Capone, por exemplo, não foi condenado pelo tráfico e contrabando de bebidas alcoólicas, mas por sonegação fiscal.

Se não fossem Michael Jordan e o fabuloso time do Chicago Bulls da década de 90, a cidade de Chicago ainda teria como único ícone o eterno inimigo do intocável Eliot Ness. E talvez, se não fossem a depressão econômica e a necessidade de gerar receita fiscal com a taxação de bebidas alcoólicas, os EUA ainda poderiam estar vivendo na maior “secura”. Para o desespero de americanos como Humphrey Bogart, para quem todo homem nasce com duas doses de whiskey abaixo do normal…

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